Você não me engana mais, Corona.

Nessa quarentena, tenho tentado manter minha mente ocupada sem nunca atrapalhar os outros, tentando manter a casa limpa, não pedir coisas que não posso ter, não discutir sem necessidade, evitar comer gordura, e produzir alguma coisa, assim como os memes dizem que Newton fez na quarentena.

Mas acabo errando em tentar me programar demais, porque até isso pode surtar alguém. No papel, me parecia fácil estudar direito uma hora por dia, depois escrita criativa por mais uma hora, e de noite, estudar técnicas de teatro no fundo da casa, treinando para um futuro monólogo cristão que tem se revelado meu novo projeto, solo e certeiro, dedicado inteiramente ao meu Cristo.

Mas a realidade vem e com isso, aprendi uma lição que o Corona queria me mostrar.

Acredito que o Coronavirus é um convite para sentar, um café da tarde com Deus, uma reunião de emergência com o editor chefe do livro que estamos escrevendo, uma conversa profunda com o detentor do poder de dar e tirar a vida.

Eu, que me perdi desde o ano passado, sobrevivi a um turbilhão de emoções negativas que 2019 me trouxe, e me preparei para reagir a elas em 2020, gritando que ano passado eu morri, mas esse ano, não morro, me encontrei sem perspectiva após o terceiro dia sem conseguir cumprir todas as tarefas destinadas e cradas para 24h.

Para começar, às 8h, deveria tomar café, em seguida, fazer meus treinos matinais de exercícios físicos, logo, inicio o dia fazendo a limpeza do cômodo da sala e às 10h, posso escolher entre jogar um jogo online e escrever mais uma parte do romance em fantasia que escrevo secretamente dedicado a personagens do cotidiano. Ah, as fugas de cada escritora...

Às 11h, deveria começar a estudar matérias relacionadas ao direito, faculdade que curso desde 2017, com a qual procrastino a tal "efetividade" em minha vida.

Até que essa primeira metade saiu estranha. No primeiro dia, segui bem até a hora de decidir entre jogar e escrever. Os servidores congestionaram, e a inspiração não vinha. Reli páginas antigas e reescrevi alguns diálogos e segui em frente.

Não consegui me concentrar quando precisei estudar direito, e quando passou a hora do almoço, eu não queria pensar em voltar para estudar literatura ou escrita criativa, afinal, mal consegui bolar um plano para fazer algum curso livre. Durante a tarde, onde eu ficaria mais livre, só pensava em continuar a ver memes no celular, me infectar com notícias falsas ou alarmantes sem nenhuma comprovação científica. E durante a noite, em nenhum dos dias até agora, eu tive um ensaio real sobre a minha peça cristã. Nada.

O que era pra ser meu momento de criação, introspecção e produção artística, acadêmica e cultural, se revelou um enorme tempo perdido, uma frustração de planos e projeções. Não li nenhuma apostila inteira, não produzi sequer duas páginas cheias, não ensaiei uma única vez.

Se nada pode ser feito, porque não tenho disciplina e nem força pra de fato administrar meu tempo, agora percebo que não posso culpar as ocupações do dia-a-dia pelas minhas ineficácias criativas ou minha infrutuosidade acadêmica.

Acabei por descobrir que não tenho paciência com meus pais, que por várias vezes, se revelam não saber que a maioria das outras famílias funcionam com filhos usurpadores e sugadores dos pais. Aqueles que dominam os cômodos da casa, que não lavam a própria louça, mas que tweetam o dia todo que querem mudar o mundo, mas não mudam seus hábitos normais.

Por fim, o corona de fato me chama pro café, como quem diz "agora sim, podemos conversar sem você fugir de mim?". Tenho que responder. E fomos conversar.

Levo diariamente uma vida regrada pela busca de ser mais do que no dia anterior, quero virar juíza, escrever livros e ser atriz. Tudo isso é perfeitamente possível dentro da minha mente, porque vi pessoas assim. Por exemplo, um dia antes da quarentena, estive no Rio de Janeiro, onde vi juízes e desembargadores, que atuam e lançam livros. Ou seja, perfeitamente possível. Se eles conseguem, eu também, certo?

É só estudar direito, depois escrever e de noite ensaiar sozinha. Essa é a receita!

Fim de papo!

"Só que a vida não é linear, Letícia", disse Corona, o tio assustador que ceifa as vidas em todo tempo. Eu quero todas as coisas, todo dia, quero chegar ao topo como as pessoas que admiro, quero ter disciplina, não quer ficar parada, e mesmo que uma quarentena me pare, eu vou querer usar ela para crescer, e não mais para ficar parada. Ficar parada me irrita demais. Não fazer nada me estressa. A obsolescência me irrita todo dia.

Pra que ficar parado? Tanto sonho. Tanta vontade. Tanta conquista. Tanta vida pra ser vivida! Como diz aquele mantra, Yolo! You Only Live Once!

Só que, o tio Corona pra mim, veio me lembrar outras paradas.

Não veio me dar um tempo pra construir algo novo, como fez com Newton. Não veio me dar inspiração para novas peças, como fez com alguns diretores. Tampouco me deu tempo de estudo, com fez com minha colega de promotoria.

Ele veio me perguntar duas coisas. "Por que você tem preguiça?" e "Por que você tem pressa?".

Ontem de noite, ao me deparar com a informação que o tribunal estaria suspendendo os prazos processuais, me assustei. Afinal, para isso acontecer, como diriam os mais velhos, "a coisa tá preta". Entrei em choque. Três anos ligada a justiça, e pela primeira vez, o pânico. Senti que o as consequências do tio Corona eram reais. Talvez, demorassem mais do que quatro meses para passar.

Coração a mil. Desespero. Sensação de fim.

  Dúvidas. Incertezas. 

Até que, levei minha mãe para dar um passeio. É. Saí de casa na quarentena. Me julguem. Fui até a esquina de casa. Não toquei em nada. Não falei com ninguém. Apenas fui até a esquina de casa. Para quem não sabe, a esquina da minha casa é a escola municipal da cidade. Fechada até segunda ordem.

Passando por ela, lembrei o que estava sentindo.

Estudei lá por cinco anos. Foram tempos complicados. Eu sabia que quando saísse, ia me tornar alguém melhor. Talvez uma escritora, talvez uma jornalista, mas nunca pensei em ser juíza ou atriz. O único sonho que permanece comigo é o de escrever um livro. Vários. Ter uma casa grande cheia de livros. Nunca precisei de palcos, nome nos jornais, aplausos. Nada disso era necessário. A felicidade seria um amor, alguns leitores, não fãns... Mas leitores.

Leitores estes que vieram em um conto anônimo que escrevi secretamente com pseudônimo. Um disfarce como de uma heroína, que me permitia ser uma estudante de dia e escritora durante a noite. Valeu a pena. Até acabar. 

Num túnel do tempo, chego até o presente, onde preciso de aplausos para sobreviver e me pego frequentemente pensando em como vou sobreviver sem aprovação total de desconhecidos. A sensação de atuar é realmente mágica. Mas não se trata disso. 

Se trata de uma coisa diferente. Minha vontade louca de ser grande. De ser a maior. A melhor. de acreditar que, já que na Escola eu era a que menos se destacava, eu tinha o direito e obrigação de ser alguém na vida. Afinal, toda aquela dor não poderia ser por nada. 

Teria mesmo essa obrigação? Estaria eu lutando tanto pela aprovação social de pessoas que nem sabem quem eu sou? Quisera eu, conquistar a admiração de desconhecidos para superar o desprezo que senti na pele daqueles que pra mim, eram importantes?

Pra isso, talvez o Tio Corona tenha me chamado para falar sobre isso. 

Prazos suspensos pelo Tribunal Estadual. Promotor e Juiz fazem home office. Não adianta lutar, rei e peão terminam na mesma caixa. Antes que eu pudesse terminar esse texto, uma diretora que conheci de longe em um Festival, perdeu a vida pro Corona. Por isso, talvez agora eu não consiga me referir a ele como "tio Corona" como antes fazia. É mais difícil poetizar alguém que tirou a vida de alguém importante para vida de outra pessoa. 

Então, Corona. Eu talvez terminasse esse texto dizendo que aprendi a lição. Que não quero buscar a aprovação das pessoas. Que não preciso viver uma vida regrada. Que quando tudo isso acabar, posso ser uma pessoa mais livre. Que meu Deus está acima de você, acima de nós dois. 

Mas Corona, meu não querido, quero terminar esse texto gritando que eu vou sobreviver a você. Eu tenho pressa porque quero chegar ao topo. E não preciso do topo para provar para minha versão do passado que deu tudo certo. E eu tenho preguiça, porque crio metas que não quero de fato atingir e isso obscurece meus reais desejos de vida. Como, ser uma escritora boa. 

Corona, você veio dizer que a vida é passageira. Que tudo é um sopro. Que somos humanos. Que somos apressados demais. Mas eu te digo, tio Corona. Vamos te mandar uma lição de volta. Ninguém vai abaixar a cabeça pra você! Somos a turma mais  impossível de ser doutrinada. Você não é um professor turrão que quer o bem da turma. Você é um cretino que comprou o diploma numa faculdade de quinta categoria e canta de galo seu número de mortes. 

Puxo tua capa preta. Rio da tua cara feia, Corona. 

Você pode até ter me ensinado algo bom, mas agora eu saio da sala de aula. Quer saber, Corona? Vá as favas com tua prepotência. 

Nós vamos virar esse jogo, tiozinho. 



Comentários

Postagens mais visitadas